O presente conto foi escrito em outubro de 2014 e fez parte de um concurso de contos cuja temática era Filmes e Cinema. Trata-se de uma fanfiction que homenageia diversos sucessos do cinema, tais como Os Pássaros, Matrix, Advogado do Diabo, Constantine, Telma e Louise, entre outros.
*****
O solitário Ford Thunderbird 66 contemplava o vazio à sua frente, enquanto se via cercado por dezenas de viaturas. Parecia aguardar que o Mar Vermelho se abrisse, mas o que Telma e Louise queriam mesmo era uma conexão via celular. O chefe de polícia sentia-se como um predador ante um animalzinho acuado e indefeso. Para ele, era apenas questão de tempo; elas reconheceriam seu êxito e se entregariam, cedo ou tarde.
Repentinamente, uma sensação estranha o acometeu. Um forte impulso elétrico em suas veias, um borbulhar em seu estômago, que se espalhou, como se seu sangue fervesse por dentro. Sua pele e todo o aspecto de seu corpo tomavam uma nova forma, sem que os soldados vissem o que se passava…
...Agora, Smith estava no comando. Irritava o fato de ter que estar entre humanos, mas, como costumava dizer, ‘Não confie a humanos o serviço de máquinas’. Um policial, ao reconhecê-lo, e sem saber que destino fora dado a seu superior, vangloriou-se:
– Nós as pegamos.
Smith tomou a motocicleta em seu poder, e ainda respondeu, com algum desprezo:
– Não. Não pegaram.
Trinity e Switch no mundo real, na Matrix, Telma e Louise eram dedicados membros do Exército dos Doze Macacos, uma organização investigada pela Interpol, em razão do ativismo contra experiências genéticas em animais, crimidéia dos tempos modernos que a ONR, Organização das Nações Reunidas, classificara como ‘um crime contra as gerações futuras’ por considerar as pesquisas necessárias aos avanços médicos. Apesar disso, o movimento crescia rapidamente em número de adeptos.
Smith partiu velozmente rumo ao carro. Sabia que elas conseguiriam uma conexão ante a inépcia do chefe de polícia. Trinity alertou a aproximação de Smith. Switch deu partida e mergulhou no penhasco, para a surpresa dos demais. O agente as acompanhou. Era provável que a conexão já tivesse se estabelecido, mas talvez alcançasse ao menos uma delas. Ouviu-se um estrondo e os homens, perplexos, correram para ver a imagem da explosão cerca de um quilômetro abaixo de seus pés.
***
O poderoso homem observava a beautifulpeople, seus brinquedinhos caros, suas fantasias: O jovem galã preocupado em manter o penteado e seus sapatos impecáveis; o engravatado cheio de si cuspindo sua arrogância sobre o mendigo, e que sua condição era castigo de Deus; as dondocas com suas bolsas de compras, postas a imitar o estilo de vida das mulheres fúteis que viam na televisão. ‘Criatura especial de Deus’, pensou, lançando um sorriso sarcástico ao elevar a cabeça e as mãos para o céu, para, enfim, disparar, destemido:
– O século XXI é meu! Todo meu!
***
Kevin Lomax era um jovem advogado de uma cidadezinha do interior. Aspirava a vida na grande cidade, onde algum dia teria seu trabalho reconhecido. O único entrave era seu pai, Jeremiah Lomax, um agricultor que insistia no cultivo de sementes naturais em detrimento das geneticamente modificadas. Era também o pastor da igreja local, e se utilizara de seus últimos sermões para pregar contra a modernidade, referindo-se não só à tecnologia como também à revolução cultural que atraía os jovens para a cidade, como temia que ocorresse com seu filho.
Diante da igreja vazia, composta apenas dos membros mais antigos, Jeremiah pregava no altar como se duelasse mentalmente com Kevin:
– Sinal dos tempos. O homem deseja tomar o lugar de Deus, ser como Ele é, fazer o que Ele faz. Mas toda a obra de suas mãos resulta em destruição. Agora querem criar vida. O que hoje é apenas uma semente modificada, meus irmãos, amanhã resultará na modificação do próprio homem. É importante que vocês enxerguem as coisas assim, porque é justo como elas são. Duvidam? Eu lhes mostro aqui na Palavra.
Ele abriria mais uma vez a Bíblia para ler sua interpretação do livro de Gênesis, capítulo seis. Depois, discorreria sobre o livro de Enoque, apesar de apócrifo, para, ao final, estabelecer que o dilúvio se deu por conta da primeira tentativa do homem, em comunhão com Satanás, de destruir a espécie divina e originalmente criada e substitui-la por outra, transformada. Kevin estava farto de ouvir estas histórias. Discordava totalmente. Achava que seu pai devia aceitar os ‘males da modernidade’; que o fato de os bancos apenas financiarem sementes modificadas não era conspiração, mas negócio. Seu velho estava enlouquecendo, endividando-se, e insistindo que Kevin abraçasse aquela causa perdida. De nada adiantavam também suas súplicas para que ele vendesse a fazenda e o seguisse para a cidade. Mas o que realmente o irritava era a insistência, a chantagem emocional, por vezes dramática, para que ficasse. A cidade o esperava de braços abertos, como uma grande maçã pronta para ser devorada. E Kevin se sentia maduro para ir embora.
Enquanto Jeremiah pregava, recordava-se de um sonho recorrente que o deixava particularmente incomodado nos últimos dias, no qual via o pai morrer sufocado enquanto uma menininha com duas cabeças lhe oferecia uma maçã amarela:
– Coma a maçã, Kevin Lomax.
Perturbado, levantou-se e deu mais uma olhada para seu pai. Jeremiah parou a pregação enquanto o observava se dirigir à porta da igreja, para, ao final, disparar:
– Eis que eu o envio como cordeiro perante os lobos…
Kevin se deteve ante a porta. De repente, o pregador viu sombras rodeando seu filho. Kevin virou-se e fitou-o diretamente nos olhos. Havia uma grande asa negra em torno de si. Jeremiah respirou ofegante.
– Eu repreendo todo o mal. Saia já, em nome do Altíssimo.
O velho pregador se ajoelhou e começou a louvar um hino. Então, a asa abandonou Kevin e saiu pela porta, seguindo em direção às nuvens. Um silêncio absoluto se fez. Mas logo uma nuvem de pássaros negros se formou no horizonte, descendo rasante. E toda a plantação de sementes naturais foi devastada, juntamente com os encarregados de seu plantio. Os pássaros, a seguir, cercaram a igreja, numa sinfonia macabra de corvos e abutres. Os homens não conseguiam levantar suas cabeças. As aves, no entanto, não invadiram a parte principal, mesmo com as janelas abertas, já que ninguém ouviu os apelos do pregador para que as fechassem. Apenas a porta foi fechada por ele próprio, enquanto Kevin permanecia ali de pé, parado, atônito. O ataque durou poucos minutos. E elas se foram, da mesma forma como chegaram. Seguiram em direção ao norte e não mais foram vistas.
O silêncio que se seguiu foi rasgado por um grito, vindo de um dos aposentos centrais da igreja. As aves invadiram um dos gabinetes e mataram o músico que liderava a mocidade, comendo seus olhos. A seguir, sem que houvesse tempo para que a informação fosse assimilada, outro grito se fez ouvir. Todos correram em direção à porta e a abriram. O outro homem deu as notícias:
– As aves devastaram toda a plantação, atacaram as pessoas nas ruas. Apenas as plantas naturais foram atacadas. Tua fazenda, pastor… não restou nada.
Tudo girou ao redor de Jeremiah. O coração parecia não bombear mais a quantidade necessária de sangue para que seus membros o mantivessem de pé. Sentia fraqueza nas mãos e um formigamento se intensificava em seu rosto. Perdeu os sentidos e seus joelhos bateram firmemente no solo, no que foi amparado por seu filho.
– Chamem uma ambulância! Uma ambulância! – Kevin gritou.
– Meu filho, não se preocupe comigo. É chegada a hora, Kevin. Escute bem minhas palavras. Não vá para a cidade. Ouviu bem? Não vá para lá. Há muito por fazer por aqui. Ame essa vida pacata, ou você se arrependerá. As palavras que eu disse hoje foram para você, só para você, Kevin. O demônio… ele está na cidade, e te espera.
– Eu sei, pai. O demônio está na cidade. Eu sempre soube.
– O demônio…
– Eu sei, pai. Eu entendo. Agora, descanse.
– Há coisas que nunca pude te dizer, filho. – Começou a chorar – Nunca pude te dizer…
Kevin assimilava lentamente o que seu pai lhe dizia, avaliando se desejava ou não saber sobre tais coisas. Os maqueiros o levaram. Foram suas últimas palavras.
***
A capela estava quase vazia. Apenas alguns parentes de seu velho pai, além dos poucos membros remanescentes da congregação, compareceram. Kevin perdera a mãe quando nasceu, e seu irmão mais velho na guerra do Iraque. Preferiu desconsiderar as últimas palavras. Elas carregariam pesadamente sua consciência por um bom tempo. Não havia mais nada a fazer ali.
A porta da capela dava para o norte. Viu que uma mulher se aproximava, foi ao seu encontro. Kevin reparou no formato de sua boca, sobrancelhas, os óculos escuros, o chapéu negro. Pensou em uma ave de rapina quando a viu. Deu uma rápida olhadela para trás e, ao voltar, não era uma, mas duas mulheres, gêmeas idênticas e igualmente vestidas, que o aguardavam. Seus cabelos eram tão negros que o sol parecia intimidado.
– Eu sou… – Começou uma delas.
– Dorothy – Respondeu outra, para continuar – E eu sou..’.
– Alice. – Completou Dorothy.
– Senhor Kevin Lomax… - Enquanto Alice prosseguiu, Dorothy virou de costas e ficou paralisada. O jogo surreal das irmãs era desconcertante. Kevin reparou que a paisagem por trás delas parecia estática como um outdoor; inclusive, havia aves no céu voando em círculos, mas elas não se moviam. Alice mantinha a cabeça estranhamente abaixada e seus cabelos tampavam seu rosto enquanto prosseguia com a conversa. Falava num ritmo pausado e sem alterar o tom de sua voz.– …Representamos o escritório Milton & Advogados Associados.
– É o enterro de meu pai.
– Lamentamos, senhor Lomax. Entretanto, não podemos esperar. Trazemos um convite de John Milton.
– John Milton?
Nesse momento, Alice e Dorothy reversaram. Alice virou de costas e Dorothy passou a lhe falar, porém esboçando em seu rosto um sorriso desproporcional à ocasião:
– O próprio. Ele deseja que o senhor integre o quadro do escritório.
Um pouco nervoso, Kevin sorriu também. Estranhamente, aguardava o chamado, apesar da abordagem atípica. Olhou pela última vez em direção à capela. Seu pai jazia na porta, lançando-lhe um olhar de reprovação.
***
Seis meses depois…
Kevin Lomax relutou por muito tempo em aceitar o convite de Erin Brockovic, repórter investigativa, mas finalmente decidiu se encontrar com ela, certo de que teria muito mais perguntas a fazer que respostas a dar.
Aguardava sua chegada. Pôs-se a observar o relógio que recebera de Milton no dia em que chegou à companhia e que era obrigado a usar. A figura de John Milton o intrigava. O homem conhecia reis, ditadores, astros do esporte e do entretenimento. Magnatas beijavam-lhe as mãos, o prefeito da cidade de Nova Iorque lhe pedia conselhos e lhe fazia confidências. Kevin anotava mentalmente os últimos acontecimentos: a morte de seu pai, a loucura repentina de Mary Ann, o sumiço de Eddie Barzoon... Não sabia exatamente a razão, mas associava tudo, por intuição, a Milton e a sua contratação.
Uma mulher entrou pela porta, esbaforida, fechou o chapéu com o qual se protegera da chuva tímida. Olhou em volta, Kevin acenou. Não a conhecia, mas pelas descrições, só podia ser Erin, já que era uma linda mulher.
– Olá, desculpe o atraso.
– Tudo bem. Sente-se.
– Não podia ser um lugar mais discreto?
– Na verdade, receio que um lugar mais discreto chamaria mais a atenção.
Kevin observou Erin retirar um gravador de sua bolsa e o pôr sobre a mesa. Olhou em volta, temia que fossem observados. Experimentou uma sensação extracorpórea.
– O que você quer saber exatamente?
– Dos relacionamentos do Senhor Milton.
– São muitos. O que, especificamente? Poderei ajudar se for mais clara.
– Há indícios de que John Milton esteja por trás de guerras, atentados terroristas e até mesmo epidemias.
– Ora, fale sério. Você não me trouxe até aqui para falar sobre conspiração.
– Tudo bem, Kevin. Ele é um dos maiores acionistas da principal empresa que comercializa sementes geneticamente modificadas.
– Sim. E qual o problema?
– Ora! Você tem conhecimento do que ocorre nesse exato momento nos campos? E em todo o mundo? Na Índia, milhares de agricultores cometeram suicídio nos últimos três anos porque ficaram endividados. As sementes naturais sumiram do mercado e eles são obrigados a comprar as modificadas. Os bancos, que no início só concediam financiamentos a quem comprava tais sementes, agora não precisam mais fazer isso, já que só há essa possibilidade, e o que eles fizeram? Aumentaram astronomicamente os juros. Os agricultores são impedidos de reaproveitar os grãos, e a polícia genética, contratada pela empresa, acusa mesmo aqueles que não o fazem. E os tribunais sempre dão ganho de causa ao conglomerado. Isso não é só na Índia, Kevin. É em todo o lugar. Todas as terras concentradas nas mãos de uma única empresa. E isso é apenas uma das coisas que Milton tem feito.
– Isso é negócio!
– Pois há o outro lado do negócio, Kevin. Experiências feitas com humanos e animais. Mutação. Você está lá dentro, sabe de alguma coisa.
Parecia seu pai falando. Pôde até mesmo sentir sua presença. Lançou um olhar em volta. Foi quando viu as gêmeas ingressando no restaurante. As mesmas do velório de seu pai, e que acreditava ter visto entrando na Limusine de Milton certa vez. Teve um mau pressentimento. Erin estava impaciente com as evasivas.
– Tudo bem. Eu já sabia que seria um tempo perdido. Durma em paz com sua consciência, senhor Lomax, se possível.
Levantou-se e saiu do restaurante. Alice e Dorothy desapareceram. Kevin viu uma nuvem negra passar do lado de fora, seguindo na mesma direção de Erin. Correu atrás dela. Esbarrou em um grupo de mulheres com inúmeras bolsas de compras; tropeçou em um rapaz de penteado à la galã sertanejo, que polia cuidadosamente seus sapatos, e que o chamou para briga. Havia, ainda, um engravatado que humilhava um mendigo na entrada de um prédio público. Finalmente, alcançou Erin ainda na esquina.
– Erin! Erin!
Ela parou. Seu olhar estudava as intenções de Kevin.
– O que foi? É o lance da consciência? Não se preocupe, homens que vestem ternos tão impecáveis não costumam tê-la.
– Não, escute. E se eu te disser que tenho visto coisas realmente estranhas.
– Como o quê?
– Os doze macacos. O que você sabe sobre eles?
– Isso não responde as minhas perguntas, Kevin.
– Eu sei, mas você precisa me ajudar.
– Ora, Doze Macacos é o nome de um grupo de ativistas que luta contra experiências em animais. Muito barulho e pouco alcance. Nada demais.
– Pois havia um advogado na companhia chamado Eddie Barzoon. Era o segundo na sucessão. Da última vez que o vi, estava com uma equipe revirando alguns documentos à noite. Ele me impediu de entrar, mas pude ver em suas mãos uma pasta onde se lia ‘Projeto Os doze macacos´.
– Que relação pode haver entre John Milton e os ativistas?
Kevin ponderou as reclamações de Mary Ann e as admoestações de seu pai. Nunca lhes dera ouvidos. Seguiram andando pela cidade, na direção da periferia. Kevin relatou sobre o que tinham sido seus seis últimos meses, desde que começou a trabalhar no escritório: a repentina loucura de Mary Ann; os estranhos clientes do escritório; os hábitos misteriosos de Milton. Erin achou pouco conclusivo, e Kevin disse que na verdade não tinha acesso ao lado B dos negócios, e que sua atuação ainda era limitada à parte jurídica, já que não integrava cúpula.
De repente, a rua estava vazia, a noite chegou mais cedo. Era apenas uma hora da tarde. A chuva caía fina. Kevin ouviu o som de uma grande asa se bater no ar e se aproximar. Segurou Erin pelas mãos e tentou entrar em algum prédio, porém todas as portas estavam trancadas. Arrancou uma lata de lixo e a jogou em uma vidraça. Erin, assustada, perguntou o que estava acontecendo, mas Kevin não tinha tempo de lhe responder. Puxou-a para dentro enquanto uma forte ventania caía rasante, acompanhada de um manto negro. Eram as mesmas aves de rapina que haviam atacado a igreja. Vinham em sua direção, enquanto eles alcançavam o elevador. Kevin apertou o botão e a porta se abriu. Jogou Erin para dentro enquanto, desesperadamente, torciam para que a porta se fechasse. Um misto de alívio e terror os abateu quando a porta fechou. Porém, o elevador não subiu. Os bicos se batiam histericamente pelo lado de fora, causando marcas. Erin não pôde conter o nervosismo. O elevador começou a subir trazendo pequena sensação de alívio. De repente, ele parou. Agora o ataque era sobre o teto, onde um rombo crescia na proporção do desespero materializado pelos gritos de Erin. Kevin forçou a abertura da porta, mas não havia saída. A luz piscava quando os pássaros abriram o teto e uma avalanche negra furiosa desaguou, revolvendo-se em terrível fluxo. Um ataque rápido. Os pássaros partiram do mesmo modo que ingressaram. Deixaram o corpo de Erin estilhaçado. A luz se acendeu e o elevador desceu, calmamente. Parou no andar térreo, a porta se abriu.
Kevin caminhou anestesiado, ignorando o corpo ali caído. Do lado de fora, as gêmeas o aguardavam na saída, ladeando a porta. O dia estava lindo, com um sol gigante e alaranjado se pondo no meio dos prédios, como uma propaganda de refrigerantes em um outdoor.
– Ele… – começou Dorothy.
– … o aguarda. – Finalizou Alice, para depois dizer – E ele lhe dirá…
– …o que você espera ouvir... – Completou Dorothy.
– Kevin! – Finalizaram juntas. Reparou que elas comiam maçãs, e que as maçãs eram amarelas.
Seguiu andando por Nova Iorque, ignorando o ineditismo das ruas completamente vazias. De repente, ouviu o ronco violento de uma motocicleta. Uma mulher vestida de preto, com óculos escuros, parou a seu lado.
– Suba depressa
Montaram e seguiram na motocicleta. Ela parou alguns quarteirões adiante.
– Não temos muito tempo. As máquinas se aproximam, em breve estarão aqui.
Abriu as mãos e mostrou duas pílulas.
– Você toma a vermelha, e volta para sua vida normal, onde Milton te aguarda. Você toma a azul, e eu te mostro o que há por trás de tudo isso.
Optou pela pílula azul. Bebeu um gole de água da garrafa que ela retirou do baú de sua motocicleta e aguardou o efeito por algum tempo. Sentiu uma leve brisa em seu rosto, que se intensificou aos poucos.
– Agora vamos!
Montou e agarrou Trinity pela cintura. Ela pisou violentamente e acelerou o máximo que pôde. Ela pilotou em direção a um prédio de vidros escuros, atravessando-o como uma parede de plasma que ultrapassava o que estava diante de seus olhos para alcançar um deserto por detrás. Agora o vento rasgava o rosto de Trinity, e Kevin também podia senti-lo atacando sua pele. Viajavam rapidamente pelo deserto à medida que escurecia, mas a lua cheia tornava o caminho visível. Visível suficiente para perceber que havia um penhasco à frente. O resto de lucidez que sobrou na mente de Kevin lhe dizia que iriam cair ladeira abaixo, mas a adrenalina que o havia tornado refém lhe dizia: ‘E daí?’ A morte dançava no horizonte, mas ele se sentia vivo como nunca, como um elemento químico que tivesse alcançado a configuração eletrônica estável, e se tornado um gás nobre. Ou o zero absoluto. Ou o nirvana. Não sentia calor ou frio. Não tinha medo nem deixava de ter. Estava vivo. E não estava. Seus músculos ansiavam pela queda e ele a agarrava mais forte, sem, no entanto, machucá-la. O gelo fluía em suas veias e Trinity empinou a motocicleta um pouco antes de chegarem ao limite do precipício. Foi quando tiveram a visão do céu e ali puderam vislumbrar o espetáculo da poeira de estrelas que se esparramavam no ar… Um breve momento que pareceu eterno…
... Interrompido pelo golpe impiedoso da máquina rumo à profundidade do desconhecido. Tão nervoso que um terço das estrelas, assustadas, permitiram-se irresistivelmente serem arrastadas no vácuo. Kevin olhou novamente para elas e viu que as estrelas agora eram negras como a própria noite e… possuíam asas! E elas se aproximavam cada vez mais rápido. Kevin alertou a Trinity, que parecia dar o máximo para, finalmente, alcançar um túnel, que se fechou atrás de si, engolindo as aves e as destruindo. Ela seguiu em alta velocidade em uma cidade desconhecida. Kevin podia antecipar cada curva, enquanto dançava freneticamente com Trinity à sua frente, ao ritmo da máquina. Preferia que a viagem não tivesse mais fim...
... Mas ela havia acabado.
Pararam em um prédio abandonado. Subiram até a cobertura. Trinity parou em frente à porta.
– Entre, Kevin. – falou Trinity.
– Como?
– Ele o aguarda. E não temos muito tempo. – Completou Switch.
Kevin entrou. Havia um homem sentado numa poltrona. Era Morpheus, o líder dos Doze Macacos.
– E conhecereis a verdade …
– E a verdade vos libertará… - Kevin completou - Meu pai era um pregador.
– Seu pai? Não estou muito certo disto, Neo.
– Neo?
– É o seu nome no mundo real.
Neo assimilou a informação sem lhe dar muita importância.
– E qual é a verdade?
Morpheus virou-se e levantou as mãos, arrastando-as como se tudo atrás de si fosse uma tela removível. E, então, estavam em um campo, onde havia milhares de cápsulas e, dentro delas, seres misturados, animais e humanos, ligados a tubos de onde saíam seus fluídos corpóreos. Todos possuíam óculos sofisticados e suas cabeças tremiam como se reagissem a estímulos. Aproximou-se de uma das cápsulas e pôde reconhecer uma menininha de duas cabeças, com o aspecto de ave de rapina e asas negras. Eram elas: Alice e Dorothy, aparentemente olhando para o nada.
– Aqui é onde a verdadeira guerra acontece. Alguns estão acordados, mas a maioria dorme. Tentamos acordar a maioria antes que seja tarde. Aqui, no mundo real, somos escravizados. Há milhares de campos onde homens são cultivados. Mas o pior está por vir. Enquanto somos humanos, temos alguma esperança de salvação, mas eles preparam coisa muito pior. Desejam realizar mutações em nossa espécie, juntando nosso DNA ao de animais. Estes são os primeiros experimentos. Apenas um grupo de teste. A maioria dos humanos ainda é normal.
– Mas, o que os impede?
– São as regras do jogo, Neo. O anticristo precisa ser revelado para que todos aqueles que dormem sejam finalmente transformados. Aí, teremos o fim de nossa espécie.
– Anticristo?
Neo congelou ao reparar a maneira como Morpheus o olhava ao dizer essa palavra. Refletiu. Tudo se encaixava.
– Então, Milton…
– É o diabo, ou como quer que você o chame.
Tudo começou a girar ante a conclusão óbvia:
– Neo. Milton é teu pai.
Desejava fugir, mas não sabia para onde. Sentiu-se tomado de certa claustrofobia, não conseguia respirar, não queria pensar em mais nada. Sentiu o estômago revirar e sair pela boca.
– Por que eu? Por que eu?.
– Você tem uma escolha.
– Qual?
– O relógio que Milton te deu.
Neo olhou para o relógio. Morpheus prosseguiu:
- Há um anel dentro dele. Quebre-o.
Neo quebrou o relógio no chão. Havia mesmo um anel dentro dele. Tomou-o em suas mãos e se pôs a avalia-lo.
– O que tem esse anel?
– Foi feito para você, possui o teu DNA, tuas células tronco. Caso você aceitasse a proposta de Milton, você o colocaria e, então, seria eleito o presidente da ONR e aprovaria a lei dos mutantes. Mas se você o destruir, sua maldição e a história acabam, ao menos por ora. Então, daqui a dois mil anos Milton voltará e tentará novamente. E nós, os Doze Macacos, estaremos prontos para o novo combate.
***
– Corta!
A equipe se descontraiu ao som de palmas, pela conclusão do trabalho.
– Bem, pessoal, essa era a última grande sequência que precisava ser refeita e, temos apenas uma pequena cena lá no início. Alice riu demais, não é? Bem, essa vai para os extras.
– Vai ter continuação?
– Não sabemos. Por mim, faríamos um filme maior, mas infelizmente o orçamento liberado foi de apenas quatro mil palavras. Tínhamos aqui um pouco de sexo entre Kevin e as gêmeas no escritório de Milton, aquela em que o Pacino se revela o diabo e diz aquelas coisas chocantes... A propósito, o roteirista ainda está putinho?
– Ele não gostou dos cortes na cena da fuga de motocicleta.
– O diretor aqui sou eu. Isso aqui é cinema. Se quiser literatura, escreva um livro! Eu quero que ele refaça o final, em que Neo joga o anel na montanha da perdição, ok? Bom, galera, por hoje é só. Agora vamos beber.
FIM
Literodiversidade
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quinta-feira, 5 de janeiro de 2017
quinta-feira, 27 de outubro de 2016
CRÔNICAS DE PANGÉIA
Este é um projeto que, na realidade, se iniciou em meados de 2014. Abandonei por algum tempo, e agora reinicio. Espero que os leitores apreciem. Críticas e sugestão são sempre bem-vindas. Um abraço e boa leitura.
- Olhe para mim e escute!
- ‘O que vão querer?’
- ‘A quem?’ - Perguntei eu, como se já não soubesse a resposta.
- Quem é você? - Perguntei.
- Eu sou o nômade. E você é um homem livre agora.
- Como assim? Livre?
- Você não pertence mais a esse lugar.
- Como ele? - Apontei para o dono da taberna.
- Ele é diferente. Mas, de certa forma, parecido.
- Você precisa partir.
- Partir? Como assim, partir? Partir para onde?
Deu-me vontade de conversar por horas sobre isso.
- Agora beba.
- ‘Esteja nos portões da cidade à meia noite de amanhã. Eu te aguardarei.’
- Podemos ser livres. Ouviu-me? Podemos ser livres.
- Que coisas? - Perguntou.
- Um estrangeiro, um nômade, esteve aqui dentro dos muros de nossa cidade, hoje. E conversou comigo.
(a continuar)
Este é um projeto que, na realidade, se iniciou em meados de 2014. Abandonei por algum tempo, e agora reinicio. Espero que os leitores apreciem. Críticas e sugestão são sempre bem-vindas. Um abraço e boa leitura.
A origem da maior de todas
as guerras
"Fogo. Olhos de fogo.
O sol de sua presença pousa sobre o abismo, o
qual perscrutam, vasculham, contemplam.
Chama intensa. Fogo eterno.
Eles anseiam por te purificar, ó criação, com
a chama que deles emana.
Chama que nunca nasceu e que jamais se
findará, quão misteriosa e maravilhosa és."
E eis que a figura destes olhos se vê
entrecortada. Como folhas que picotam a luz do sol, os olhos do Guardião tremem
pelo balançar de seus cabelos brancos. Brancos de uma alvura jamais vista. E
eles balançam sob o efeito de um vento cuja origem se desconhece. Um majestoso
som de trovão sai de seu trono, toma todos os presentes e os faz tremer, mas,
por sua ordem, eu, Johannus, esforço-me por manter minha cabeça erguida e em anotar
todas as coisas que testemunho. A imagem do Guardião das Estradas Celestes,
entretanto, é tão magnífica que, se não me fosse dada pelo próprio a
determinação de escrever, meu espírito não resistiria, e estaria eu como os
vinte e quatro anciãos que o circundam. Homens excelentes, todos vestidos de
branco e com belas coroas em suas cabeças, diante Dele, adorando-O e chamando-O
insistentemente de Santo. Sim, Ele é o verdadeiro êxtase de todos os homens, o
fim próprio de todos os anseios e propósitos genuínos.
O Guardião das Estradas Celestes se depara diante
de toda essa terra a que chamamos Pangéia. Sua presença se faz sentir, muito
além do calor emanado pelo sol, que lhe é obediente por seu turno. Sim, o
espírito da criação treme e geme. Os homens, entretanto, não ouvem o clamor
vindo de seus próprios espíritos. É que eles foram cegos de tal realidade por
uma mentalidade sinistra que há muito por aqui se estabeleceu. Pudessem os
homens ouvir seus íntimos e temeriam, assim como o sol, aqueles olhos de fogo,
olhos que regem e observam todas as coisas. Pois é certo que poder maior não
há, e não há nada em segredo que não lhe venha a ser revelado.
À Sua frente estão os sete candeeiros, que
representam Seus sete espíritos, e eles repousam em um mar de cristal que emana
do trono. Acima deste, há um arco esmeralda, e, dele, raios e trovões surgem. E
não é magnífica a visão do próprio trono? Digno de sua excelência? Pois em seus
quatro cantos repousam quatro viventes: Homem, águia, leão, boi, sendo certo que
cada qual possui seis asas. E todos eles, bem como suas asas, estão cobertos,
repletos, de olhos.
Eu vejo agora que três cavaleiros foram dispersos
ao receberem uma carta do arcanjo maior, e saíram da majestosa presença do
Honorável Guardião das Estradas Celestes. Aquele cujos olhos emanam fogo e
anseiam por te purificar por inteiro, ó criação. Mas... o que é isso que vejo?
Eis que se ouve um burburinho no santuário... os arcanjos estão inquietos! Eles
se cutucam, agitados; apressam-se a levantar suas espadas. Espadas de fogo.
Fogo que lhes foi dado e que possui a mesma origem daqueles que emanam dos
olhos sagrados. Mas... veja... agora também são os anciãos que se inquietam, e
eles se voltam e olham na direção dos portais! E é com repugnância que se manifestam.
E é com revolta que se manifestam. E é com desprezo que se manifestam.
E meu espírito se turbou quando vi tais coisas.
Mas o Guardião das Estradas Celestes, O Primeiro
e O Último, Aquele que vive eternamente, Ele se mantém tranquilo e impassível.
Sim, Ele sabe de todas as coisas. O mínimo e mais desprezível de seus reflexos
bastou para que todas as criaturas celestes reencontrassem a paz em seus
íntimos. E, assim, o ser repugnante prosseguiu sua marcha. E ele se aproxima do
trono, lembrando-se dAquele a quem já pertenceu. Seu coração, entretanto,
destoou e se insurgiu contra o verdadeiro poder. O poder eterno.
E o ser repugnante, que atende pelo nome de A
Eficácia, se deteve ante os sete castiçais, temendo atravessá-los. Era também
conhecido pelos habitantes de Pangéia como A Serpente. A Eficácia que a tudo
precede. Aqui, diante do Santuário do Guardião, entretanto, poderia ostentar no
máximo a alcunha de A Eficácia, pois apenas o Guardião é Aquele que precede a
todas as coisas. E foi Ele quem irrompeu o silêncio ao lhe perguntar:
- De onde vens?
- De passear pela Terra e de rodear por ela
- respondeu A Eficácia.
- Observaste como os reinos irmãos se dedicam
a meu reino separado de Seth, e como este extirpa a maldade de seu meio?
- Mas não é verdade que os cercaste de todos
os cuidados e bênçãos? E deste a eles um luzeiro que é o primogênito dos reinos
em que possam se espelhar, o qual possui contato direto com o teu trono, por
meio da escada de Bethel e todos os nômades à sua disposição? Pois feche os
céus por um tempo, derrube a escada, feche o acesso dos reinos irmãos a Seth, e
verás se todos eles não lhe viram as costas, porque é por medo que se dirigem a
Seth, não por amor.
E o Guardião muito se entristeceu com a malícia
manifesta nas palavras daquela criatura imunda, pobre e miserável. Mas resolveu
aquiescer com sua requisição.
- Está bem. Então, por três semanas eu
fecharei o acesso dos reinos irmãos ao reino de Seth. Porém, nesse período, não
tens poder nem autoridade para tocá-lo.
A Serpente tramava em seu coração. Acreditava
mesmo, em seu íntimo, que era digna de tomar o trono em que o Guardião se
encontrava assentado, e ser ele próprio, o Guardião das Estradas Celestes. Se
por um acaso conseguisse converter toda a criação, poderia, por fim, destruir o
próprio primogênito dos reinos, o reino de Seth, e se tornaria o legítimo rei
de toda a terra conhecida por Pangéia. Então, junto de sua nova criação,
subiria as escadas de Bethel, promoveria a grande batalha de todos os tempos,
e, finalmente, tornar-se-ia senhor de todo o universo. Vinte e um dias, no
entanto, seria muito pouco tempo para tamanhas pretensões. Decidiu barganhar um
pouco:
- Mas, meu Senhor, apenas vinte e um dias! O
que são vinte e um dias para provar a fé de todos os povos? Eles que se
dedicaram a Seth por tantas eras. Dai-me vinte e um anos, o que tenho por
medida mais justa para que possa lhe mostrar suas fraquezas. Porque o Senhor
tem sido o seu Senhor por tanto tempo, e eles não têm razão para virar-Lhe as
costas.
O Guardião das Estradas Celestes levantou os
olhos e contemplou o vácuo. Mais uma vez, decidiu aquiescer, ousadamente.
- Dar-te-ei então três semanas de anos.
Porém, nesse período, não tens poder nem autoridade para tocar em Seth.
A Serpente, prodigiosa mestre de intrigas, achava
que precisaria de alguma vantagem a mais. Assim, resolveu barganhar ainda mais
um pouco:
- Mas não é verdade que os teus servos são
prudentes e que suas candeias devem permanecer acesas até o fim de todas as
coisas que existem debaixo do sol? Então por que tanto cuidado para com os
reinos irmãos, já que lhes cabe a prudência? Seria mais justo que me fosse dado
mais tempo para que, sem privilégios, pudessem ser provados.
O Guardião contemplou mais um pouco a imensidão
do abismo, aquela a qual seus olhos anseiam por purificar com o fogo que deles
emana. Rapidamente, vasculhou cada parte de sua criação contida no interior da
Pangéia, até o mais escondido e humilde de todos os seres, para, ao final,
sentenciar:
- Dar-te-ei então três semanas de anos, mas a
Seth darei apenas três semanas de dias. Porém, nesse período, não tens poder
nem autoridade para tocá-lo.
A Eficácia conteve sua satisfação, certa do
alcance de seus desígnios. Girou seus calcanhares e seguiu seu caminho tortuoso
de volta à terra a que chamamos de Pangéia, para o prosseguimento de seus Ais.
E eu segui, diligentemente, anotando todas essas
coisas...
A revelação
Os pontos iluminados se aglomeram nos arredores
do reino. E é com êxtase que Maranin os observa. Desde que o rei Tocreen, seu
tio, a enganou, anos atrás, dizendo que se tratava de bárbaros que se
aproximavam e que desejavam impetuosamente tomar a fortaleza, Maranin passou a
experienciar vívida excitação nessa época, quando todos os povos oriundos dos
reinos irmãos se juntam em caravanas rumo ao reino de Seth, para a grande
celebração da humanidade em torno do culto ao Guardião das Estradas Celestes.
Olhou para os céus e viu um intenso tráfego por
aquelas bandas, o que simbolizava um prenúncio da presença do
Guardião no evento próximo.
Agora, com seus catorze anos de idade, põe-se a
recordar da celebração anterior, sete anos antes, a primeira que presenciou.
Ela sempre se dá no mês de Yudashi, entre o final do verão e o princípio do
outono, a cada sete temporadas. Já não é mais uma criança, mas é certo que irá
se divertir muito com os Clowns, vindos do reino de Torga, seres feitos no
sétimo dia da criação, quando o Guardião descansava, e que, talvez por
pertencerem à parte de sua mente relaxada, sejam tão criativos e engraçados.
Como se já sentisse os efeitos de sua puberdade, também anseia pela chegada das
carruagens de Branden, o reconhecido reino dos belos. Ainda sente algum medo
dos Anakins, famosos fazendeiros-guerreiros gigantes, apesar de seu pai,
Daniel, insistir que estes são, na verdade, amigos muito devotos, homens de
grande confiança.
Essa é, enfim, uma festa muito esperada, momento
em que Maranin costuma exibir seu cavalo, Córdoba, famoso campeão de todos os
reinos, presente do próprio rei Tocreen, seu tio; e Zorro, seu belo e divertido
coelho azul, presente de Elias, o rei Clown de Torga. Quando Maranin completar
vinte um anos, é dito que deverá entregar o comando de Córdoba àquele que for o
dono de seu coração, o que muitos acreditam que não será outro senão Absalom, o
filho do rei.
Maranin está ansiosa pelo raiar do próximo dia,
quando invadirá os acampamentos dos visitantes com o ímpeto de um bárbaro. Lá
eles permanecem até o soar da trombeta, que anunciará a entrada na praça
central. Ao longo do dia, eles comem, bebem e se divertem, aproveitando as
maravilhas do reino. Da primeira vez, Maranin fora acompanhada de seu pai e de
sua mãe, e foi tão divertido que conseguiu convencê-los a passar o dia com os
visitantes, indo de acampamento a acampamento. Recorda-se agora de como se
divertiu tomando banho no lago de águas cristalinas com as crianças de Branden;
ou quando escalou a montanha de pedras de fogo, a qual brilha à noite, montada
nos ombros de um Anakin, e de como chorou enquanto ele se aproximava, sob os
risos de seus pais; das corridas no campo aberto ao lado das crianças de
Kedraris, o reino da Justiça e da ordem; mas, sem sombra de dúvida, o ponto
alto daquele dia ocorreu já no final da tarde, pouco antes dos preparativos
para a entrada triunfante na praça central, quando todas as crianças pararam
diante do acampamento de Torga. Ali, Maranin recebeu a coroação de um belo dia,
rindo e se divertindo com os espetáculos mágicos e divertidos promovidos pelos
Clowns. Como seres com feições tão esquisitas podiam gerar sentimentos e
sensações tão agradáveis, que Maranin depois descobriu se tratar de alegria,
espanto, suspense, mistério?
Daniel interrompeu sua lembrança e a trouxe de volta
para o salão, onde todos já estavam à mesa, comendo, bebendo e se divertindo. O
rei Tocreen, ao lado de sua rainha, Isabel, e seu filho, Absalon, estavam em
lugares separados, distribuídos entre os patriarcas dos outros reinos e seus
súditos mais próximos. Conversavam sobre assuntos chatos, como política,
negócios, e sobre os verdadeiros bárbaros e selvagens cujas tribos se
amontoavam fora dos limites dos reinos irmãos, mas de quem se revelava certo
receio. A atenção de Maranin se voltava quase que exclusivamente para a beleza
da rainha e sacerdotisa do templo do Grande Guardião, Isabel. Maranin tinha um
apreço tão especial pela rainha que sua mãe, Raquel, às vezes era acometida de
algum ciúme. Leve ciúme, no entanto. Era perfeitamente compreensível para
Raquel tal admiração. Pois a rainha era, sem dúvida, a mais bela dentre as
mulheres de todos os reinos.
A rainha Isabel contava seus quarenta anos de
idade, mas aparentava ter apenas a metade. Ou menos. O segredo de sua
juventude, entretanto, era um mistério. Todos diziam ao rei Tocreen que o tempo
o traía com sua mulher, e ele se envaidecia com isso. ‘A mulher é a coroa
de seu marido. Quanto mais vistosa a coroa, mais glorioso o rei’,
costumava responder quando ouvia gracejos de tal natureza. Mas havia alguns que
realmente se sentiam intrigados com o mistério que rondava a jovialidade da
rainha. Ela sequer possuía rugas, seus cabelos eram grandes e vistosos, a pele
tão macia e esticada, olhos que brilhavam vívidos como se todo o mistério da
vida ainda estivesse descortinado e apenas um vislumbre se apresentasse num
ponto brilhoso e distante. Para algum desavisado, e para as línguas mais
atrevidas, cada vez mais comuns em Seth, e dado o visível apego que mostravam,
poder-se-ia imaginar que a rainha fosse a mulher de seu próprio filho, o
príncipe Absalom. E não seria em vão.
Todos sabiam que o príncipe só deixou de
amamentar por insistência dos conselheiros do reino, que achavam inadequado que
tal ritual se mantivesse quando ele já contava com dez anos de idade. Mas o rei
via isso com bons olhos. Interpretava que o amor da rainha fortalecia o caráter
de seu filho, no que parecia ter razão.
Absalom cresceu sobremaneira forte e poderoso,
tido como o principal dos guerreiros e caçadores de Seth. Possuía um dom único,
inestimável e raro para as lutas. Tinha habilidades inclusive estratégicas, e o
demonstrava ao formular tramas para captar seus adversários, os bárbaros e
selvagens do mundo além das fronteiras dos reinos irmãos. Já na época em que
contava com apenas quinze anos de idade, aventurava-se a adentrar no território
dos bárbaros, às vezes à frente de seu pai, sem que esse o soubesse ou
permitisse, já que Tocreen, seguindo orientações do próprio Guardião, tinha
planos diversos para aqueles povos, a não ser de guerra.
Mas para Absalom, o guerreiro inestimável, eles
não passavam de selvagens, a quem desejava a destruição. Desde criança,
prometia que, em seu tempo de reinado, tomaria todas as terras de Pangéia e
governaria todo o mundo. Tocreen o observava com admiração, mas também com
certo receio. Não o deixava transparecer. Sua face e seu comportamento
demonstravam sempre total controle e autoconfiança, que era senhor da situação
e que possuía total autoridade sobre o filho, que ia exatamente onde o pai sabia,
permitia ou determinava que fosse. Mas, em algumas ocasiões, Tocreen se
encontrou conversando com o Guardião acerca de seus temores e preocupações.
Chegara a pensar que Absalom não fosse seu filho, que não tinha sua
personalidade. Sim, às vezes Tocreen se via acometido de temor acerca do
destino de Absalom. Sabia perfeitamente do plano do próprio Guardião das
Estradas Celestes de construir um mundo em que todos O adorassem. Por outro
lado, sabia também que, desde o Grande Ai, quando a Eficácia caiu neste mundo e
passou a viver entre os homens, tal tarefa se tornou por demais complexa.
Desconfiava que o desejo de Absalom de algum modo
não se coadunava com os princípios celestes, como se o jovem guerreiro
desejasse, na verdade, tomar todo o reino para si, de modo egoísta. Como se
quisesse, ele próprio, tornar-se um deus...
... Nessa terra a que chamamos de Pangéia...
Assim vivia o rei Tocreen, com seus pensamentos
perturbadores, dúvidas e temores. Porém, os mantinha sob controle, e procurava
se convencer de que tudo, no final das contas, não passasse de preocupações
tolas.
Afinal, o reino de Seth era guardado pelos montes
guardiões, cercado de bons conselheiros e guerreiros, com os cavaleiros nômades
em sua direta submissão, circulando pelos reinos e subindo diretamente ao
trono, por meio da escada de Bethel. Nada de mal poderia lhe ocorrer.
***
Maranin provavelmente não havia dormido, pois é
certo que não tinha o hábito de acordar tão cedo. Mesmo assim, saiu como um
foguete pelos campos. Queria ver seus "primos", como costumava chamar
as crianças dos reinos irmãos. Recordava-se de Aikhar, Tsali e Cassius, a quem
conhecera quando brincavam com os Clowns. Como estariam agora? Afinal, sete
anos haviam se passado. Onde os encontraria?
Zorro estava particularmente inquieto. Maranin
parou na beira da colina, de onde era possível ver todos os acampamentos ao
redor do lago de águas cristalinas. Segurou-o entre seus braços enquanto
observava a maravilhosa profusão de bandeiras, fumaças coloridas, faixas e
tendas. Animais exóticos trazidos de cada canto, bichinhos de estimação
esquisitos... Zorro, no entanto, insistia em chamar sua atenção. Certamente
gostaria de falar para lhe dizer algo. Num impulso, o bichinho se soltou e
partiu em disparada morro abaixo.
- Zorro, volte aqui!
Maranin teve de correr rapidamente atrás de seu
coelho, que invadiu os acampamentos de modo desastroso. Maranin derrubou
um Clown que testava pernas de pau, além de uma mesa na qual senhoras Branden
tomavam chá e também uma tenda onde um pacato Anakin tocava uma viola de modo
desengonçado.
Zorro correu em direção norte e Maranin se
esforçou para alcançá-lo. Entrou na floresta intermediária sem tomar
conhecimento das sequóias que outrora lhe causavam temor. Algo, no entanto,
começou a lhe despertar o senso de risco. Maranin sabia bem para onde estava
indo. Conscientemente ou não, Zorro a conduzia para a floresta proibida. Apesar
disso, ela prosseguia, sem se dar conta de que não era mais a captura de seu
coelho o que a motivava a correr naquela direção, mas era uma força maior que a
puxava. Tão forte que, quando Zorro atravessou a gruta que dava passagem para a
área proibida, apenas parou por um breve momento em sua abertura, para, depois,
seguir em frente.
Maranin atravessou a gruta. Enquanto o fazia
ouvia um som cada vez mais forte vindo do outro lado. Um som de tambores e
tímpanos, cantos graves ecoavam e lhe causavam calafrios. Sentiu seu coração
bater mais forte e uma voz em seu íntimo lhe dizia para fechar seus olhos e
sair dali. Mas ela prosseguiu.
Ao sair da gruta, encontrou uma mata fechada à
sua frente. Viu algumas pessoas reunidas. Elas vestiam túnicas. Olhou para o
lado e, finalmente, encontrou Zorro em cima de uma rocha. Ele estava parado,
olhando fixamente em uma direção. Maranin estranhou seu aspecto manso depois de
tanta correria. Foi até ele e percebeu que não fugiria mais. Tocou em seu
bichinho como se desejasse entender o motivo de tudo aquilo, mas ele permanecia
estático, como que indicando para onde Maranin devia dirigir seus olhos. E ela
virou para ver o que ele via.
Isabel estava em um altar. Completamente nua.
Montava sobre um jovem musculoso que usava uma máscara. A cabeça de um
bode. O ritual acontecia às vistas de um grupo de aproximadamente duzentas
pessoas, que observavam em volta do altar enquanto entoavam terrível cântico. A
rainha estava irreconhecível. Não parecia em nada aquela jovem e bondosa
senhora que tanto admirava. O jovem tirou a máscara, e o que Maranin viu foi
ainda mais perturbador. Era o próprio príncipe, Absalom.
Maranin agarrou Zorro e saíram correndo dali.
Capítulo 4 - Um poderoso
reino na Terra
Seu coração o trouxe até aqui. Talvez tenha
ouvido o clamor de outros corações, um clamor velado, com certeza. Secreto. O
clamor secreto e temeroso de todos os corações talvez o tenha chamado. O
estrangeiro. O nômade. Pois ele chega do deserto, montado em seu camelo, com
sua túnica negra cobrindo até o rosto. Deve ter sido longa sua viagem,
tempestades de areia deve ter encontrado. Cobras do deserto, salteadores,
miragens, demônios da noite. Pois não se sabe até onde vai o poder de
Númis, Zardok e da ‘Eficácia que precede’, porém, é certo que
ainda não se estende a todos os cantos da Terra. Não por enquanto. Mas, depois
que a grande estrada estiver construída, não haverá mais limites àquele que é,
mas não está. Zardok é filho da Eficácia Que Precede, e, por isso, certamente,
nada o deterá.
O estrangeiro adentra nos muros dessa cidade e
generosamente a contempla. Livre ele é, e esse é um grande mistério. Como o
estrangeiro, livre como ele é, adentra aos muros dessa cidade e generosamente
contempla a grandeza, e o poder, e a magnanimidade do grande Zardok? Pois Númis
não adentrou em seu coração, nem em sua mente, e sequer ouviu suas palavras.
Distinto estrangeiro. Homem livre de passagem
, imune ao poder de Zardok.
Aqui se encontra esse grande poder plantado no
centro dessa terra a que chamamos de Pangéia. Diante dos olhos do estrangeiro
desponta a grande cabeça da esfinge. E, dentro dela, de frente para toda a
cidade, está o trono de Zardok, aquele cujos olhos não estão. Porque seus olhos
estão em outra dimensão, pois é dito que o estão em contato direto com a
maravilha jamais vista, chamada de ‘A eficácia que precede’. E ela lhe
canta a história de toda a Terra, e dita as ordens a serem seguidas, e o enche
de poder e de astúcia, e o torna senhor de todos os homens. Quem porventura
ousaria se levantar ante imenso poder? No pátio, à frente do trono, instalada
em um pedestal de onde se vê toda a cidade, permanece de pé, a todo o tempo, a
grande sacerdotisa Númis...
... E ela nunca dorme. Vive eternamente. Ela é
aquela que nunca pára e está sempre de pé. Dança a dança das três dimensões,
com a qual aponta seu dedo indicador para todos os homens, desnudando seus
pensamentos, sentimentos e atos e palavras. Como um grande farol, Númis tem você.
Ela olha para você e vê tudo o que há dentro. Em apenas um piscar de olhos ela
lhe aponta seus dedos e você imediata e maravilhosamente sente que ela está.
Não há nada que não possa ser visto por ela: nenhum pensamento, nenhuma
palavra, nenhum ato, nem sentimento qualquer pode escapar da argúcia de seu
espírito, já que esse também vem da ‘Eficácia Que A Precede’. Assim,
assentado em seu trono, Zardok, o que é, mas não está, comanda. E Zardok tem.
E todos os guerreiros se rendem a sua autoridade,
porque todos temem ‘A eficácia que o precede’, e todos sabem que Númis
também os têm. E também por isso, dedicam a ela, a Zardok, e à 'maravilha
jamais vista' todos os seus pensamentos, todos os seus sentimentos e
todos os seus cumprimentos. Se porventura algum guerreiro se levantar contra a
ordem estabelecida, então os guerreiros dedicados o entregarão, e, segundo as
ordens daquele que é, mas não está, arrancarão seus olhos. E, em nome de Númis,
o castrarão diante de seus filhos; e, para a alegria dos homens dedicados,
estes estuprarão a esposa do corruptor das almas, não antes que este possa ver
seu pênis castrado ser dado aos porcos. Por fim, em amor ‘À Eficácia que os
precede’, os guerreiros dedicados empalarão o corruptor das almas e, antes
de seu último suspiro, arrancarão sua pele e queimá-lo-ão em praça pública.
E ainda que todos os guerreiros dedicados
decidissem, a um só tempo, rebelar-se contra o maravilhoso e magnânimo poder
estabelecido, Zardok não o temeria, já que sabe que, a seu lado, está a Eficácia
que o precede, a quem todos os homens que são servos do poder estabelecido
temem e adoram. E, se assim não fosse, há ainda a guarda real, com seus temidos
soldados de
elite. Soldados negros, destemidos, suicidas. Grandes matadores,
homens que bebem sangue de seus vencidos. Todos filhos de Zardok.
Assim é seu poder, acompanhado de Númis, sua
sacerdotisa, energizados pela ‘Eficácia que os precede’. E todos os
seus guerreiros dedicados.
E a grande cidade não pára de crescer, com suas
edificações que apontam para os céus, para onde não podemos dirigir nossos
olhos, pois Númis o saberia. E a pena que sofrem os servos não é tão severa
quanto a que sofrem os guerreiros, mas escolher entre a morte, a castração e o
trabalho debaixo da Terra não serve de consolo. Zardok é senhor de todas as
mulheres, à exceção das mulheres dos guerreiros, sua maior paga. Assim, de
tempos em tempos, algumas mulheres do reino são escolhidas para serem suas
servas, em seu harém, e os servos que as dedicam devem se orgulhar de elas
terem sido escolhidas. Pois Zardok não deseja apenas as virgens, mas também as
mulheres daqueles que se encontram em sua submissão. Diz-se que ele, energizado
pelo poder que lhe é concedido, é capaz de permanecer em coitos que durem dias
e dias com uma, duas ou mais mulheres. Há quem diga que algo toma conta de seu
corpo, algo muito poderoso, e que é daí que nascem os guerreiros de sua guarda
real. Quando um servo dá vida a um que se torne um guerreiro, ele ganha três
dias de descanso no ano em que a criança nasce. Se um servo tiver a sorte de
fazer nascer cinco guerreiros dentre seus filhos homens, além desse descanso
ele tem a promessa de que em algum dia será dispensado dos serviços. Tudo isso
como demonstração da grande bondade de Zardok, o magnânimo. Poucos, entretanto,
são aqueles que usufruem de tais dádivas. Até porque os trabalhos são
excessivamente forçados e necessários. O reino de Zardok tomará toda a Terra e
trará aos homens o conhecimento do verdadeiro poder. Servimos exaustivamente a
essa causa. Todos por um. Por isso sofremos e por isso lutamos, ainda que não
compreendamos. Ainda que haja o medo constante em nossos pensamentos, palavras,
sentimentos e atos. Númis nos mostrou, com toda a sua sabedoria, que o medo era
nosso companheiro e que ele nos guiaria na construção dessa estrada. Além do
medo, ela nos ensinou também a amar a cegueira. Não enxergar leva a não saber e
não saber leva a não contestar e não contestar leva a obedecer e obedecer leva
a construir e construir nos levará à construção da grande estrada, que nos
levará ao grande dia, o qual esperamos e ao qual tememos.
Assim, quebramos cada pedra, forjamos cada
espada, e com o pouco sangue que nos sobra, penetramos raivosamente nossas
mulheres. Pois a raiva é tudo o que nos resta. Númis não nos proíbe.
Experimentamos ali nossa reserva de poder, de sermos como aquele que é, mas não
está. Ao menos em nossas casas. Tudo em prol da grandiosidade do reino e da
construção da estrada. Quando ela estiver pronta, quando esse dia chegar,
chegará também o descanso de todos os homens. E Zardok, aquele que é, mas não
está, reinará, e a escuridão povoará tudo o que há.
Eu sou um servo do grande reino, e estou
imensamente feliz por participar. Talvez um pouco cansado, mas nada que possa
contrariar a grande sacerdotisa. Em verdade, confesso que em determinado
momento tive o vislumbre de olhar para os céus. Meu coração ficou intrigado. Vi
o que os outros homens não ousavam ver. Vi as estradas lá existentes. Ali havia
seres alados, livres, leves. Livres, eu disse. Livres eu pensei. E Númis não o
soube. O 'Númis não o saber' me deixou deveras intrigado. E o que a
teria impedido? Tive curiosidade ao olhar para aquelas bandas e de saber como
vivem aqueles que não tiveram a felicidade de estar aqui e de viver o que
vivemos, de experimentar o que experimentamos, de ter essa alegria e de ter tal
expectativa.
Mas agora meus olhos se detêm diante do
estrangeiro. O nômade, que contempla a grandiosidade da construção dessa
estrada, não menos que a grandiosidade da construção de nossa cidade.
Meus olhos quase se encontraram com os olhos de
um dos guerreiros que faziam guarda diante do portão da cidade. Isso é
proibido. Nem mesmo nossas mulheres podemos olhar nos olhos. Nossos olhos contemplam
apenas os olhos de Númis. Nem mesmo os de Zardok, já que aqui eles não estão.
Tive de abaixá-los e seguir adiante. Sabia, entretanto, que o guerreiro
partilhava, de algum modo, de algum de meus pensamentos. Algo me diz que,
brevemente, serei executado. Quando Númis olhar para mim, da próxima vez que me
encontrar, ela me verá. Porque é certo que Númis me tem. Daqui onde estou
consigo ver sua figura. Ela se move rapidamente e atinge o âmago do espírito de
todos os viventes. Já há algum tempo que ela, entretanto, não me vê. E isso
causa estranheza e inquietação a meu espírito. Muito medo eu tenho. Meu coração
às vezes parece querer sair de mim, o que ela facilmente constataria. Quando
ela olha para você dá para sentir seus pensamentos, ainda que não lhe dirija
uma palavra sequer. Por isso fiquei ainda mais intrigado com o estrangeiro que
adentrou em nossos portões. Agora posso vê-lo. Vejo sua sombra, seu espectro e,
aos poucos, meus olhos tateiam, temerosos de alcançar sua vista. E ele anda de
um lado a outro. Parece incrivelmente de pé, com o peito estufado, como os
guerreiros. Sim, os guerreiros têm autoridade para andar assim. Há quem diga
que eles podem até mesmo olhar nos olhos de quem quiser. Dizem que os olhos dos
guerreiros possuem luzes que não lhes pertencem, e que é Númis quem lhas
concede, no exato momento em que se diz que foi dada vida a um guerreiro.
Costuma-se dizer que tal luz os identifica e lhes transmite o entendimento
direto da ‘Eficácia que os precede’, em certo grau, de modo que compreendem
exatamente a ordem estabelecida, à qual euforicamente se entregam.
- ‘Onde posso passar a noite?’ ,
perguntou-me o estrangeiro. Tive medo de responder e já havia me abaixado e
girado meus calcanhares para me afastar, quando o homem me deteve e repetiu a
pergunta, num tom inédito de autoridade: – onde posso passar a noite?
Meus olhos se voltaram imediatamente para a
sacerdotisa de pedra viva, enquanto meu espírito se enchia de tremor pelo
terror de um possível e iminente encontro. Mas ela, estranhamente, não apontou
para mim. O estrangeiro se impacientava com minha hesitação. Como não consegui
responder, caminhei a sua frente e indiquei que me acompanhasse. Apesar de ter
a impressão de que apenas eu o via, temi lhe dizer qualquer coisa. Segui em
direção a uma taberna, onde forasteiros costumavam adentrar. Essa casa era bem antiga,
dos tempos em que Zardok ainda não havia se estabelecido, diziam. O dono
conhecia os tempos passados, mas nada dizia sobre eles. Decidi deixar o
estrangeiro ali e partir sem sequer lhe dizer uma única palavra. Mas aí ele
tocou em meus ombros e fez algo inesperado. Olhou em meus olhos e me disse:
- Olhe para mim e escute!
Senti-me como se a própria Númis falasse comigo.
Sou bastante jovem, não conheci os tempos anteriores ao poder estabelecido.
Nunca tinha olhado ninguém nos olhos antes. Era algo bastante estranho, podia
dizer. Um nível de intimidade que não tínhamos sequer com nossas mulheres, nos
momentos mais privados. Era certo agora, em meu espírito, que a morte se
aproximava. Olhei por cima dos ombros do estrangeiro e vi Númis apontando em minha
direção...
CAPÍTULO 5 - O SANTUÁRIO DA
EFICÁCIA
Um imenso salão escuro, com seis colunas de cada
lado, as quais conduzem ao altar. À frente de cada coluna, sacerdotisas
vestidas em túnicas cinzentas seguram cálices, ajoelhadas. Seis degraus
necessários levam à pira onde arde o grande fogo. Ali se encontra a essência da
‘Eficácia’. E os olhos de Zardok vagueiam em uma névoa, de um lado a
outro do salão, em busca da sintonia com aquele espírito que o instrui.
Repentinamente, uma voz poderosa surge do nada para preencher todo o templo. A
voz urra nervosamente e os olhos de Zardok se erguem até a chama que arde. E
esses olhos não temem mais o que é terrível porque já lho pertencem. Pois, há
muito que se encontram perdidos nas profundezas desse poder.
E a chama brada, dizendo aos olhos de Zardok que
ele deve se apressar, pois é chegada a hora em que eles devem retornar à
dimensão a que pertencem. Diz também que deve haver um sacrifício, ainda que
simbólico, porque grande é sua sede.
A estrada que o grande poder constrói tende a ser
bidimensional, e a sua dimensão terrena é a extensão daquela que a levará aos
céus. Porque esse poder pretende se tornar único e soberano, e ele convenceu os
homens de que devem tomar as estradas já construídas nos céus, e tomar os
lugares daqueles que lá residem. E é com puro êxtase que as sacerdotisas ouvem
tais palavras, que, a elas, transmitem esperança. Porque elas sonham com o dia
em que serão aladas e livres. Sim, as sacerdotisas desejam alcançar o ponto de
se tornarem como que borboletas, grandiosas e majestosas, deixando para trás
sua natureza morta, ao mesmo tempo em que se tornarão eternas. Por isso, elas
cantam para a Eficácia. Suas vozes não são como as vozes costumam ser, mas sim
como flautas. Sim, as sacerdotisas têm vozes de flautas quando cantam. Doces,
longas, esquivas.
Do outro lado, na dimensão do reino, os lábios de
Zardok se mantêm cerrados, mas seu espírito exala a ordem, a qual é assimilada
pela sacerdotisa Númis, que a repete de imediato, tão grande a sintonia. A
grande estátua de pedra que não o é, mas que se move, gigantesca e cinzenta,
com seu único olho no meio da testa, transmitindo terror e submissão a seus
servos, aqueles que se abstém de olhar para os céus. Ela executa as ordens
preditas. E, assim, há sacrifício em favor da Eficácia, ainda que simbólico, já
que é grande sua sede. E todos repetem obedientemente as palavras proferidas
por seu mestre, e, assim, a grande estrada é erguida. Porque as palavras não
estão vazias, e sim carregadas de um espírito de medo que toma todos os
habitantes do reino. Quando a estrada estiver pronta, os servos e guerreiros de
Zardok, possuídos pelo espírito de poder da Eficácia, tomarão toda essa Terra a
que chamamos de Pangéia, e, então, todos os homens livres já não o serão.
E assim o é porque o próprio Guardião das
Estradas dos Céus permitiu que fosse. Ele disse que transmitiria aos homens
o ‘poder acreditar naquilo que ele insistentemente julgou ser mentira
por todos os séculos, mas que os homens, por sua vez, digamos assim, preferiram
deixar para compreender mais tarde, mas que também aí não o fizeram’.
E os olhos de Zardok se alegram com tudo isso.
Mas certo é que, talvez, ele não compreenda que é essa uma alegria débil, a
alegria de um verdadeiro escravo.
CAPÍTULO 6 - O CHAMADO
O estrangeiro saiu de minha frente e me pôs a
descoberto, de modo que julguei ser muita maldade de sua parte me deixar tão
exposto. Agora, a grande sacerdotisa se afigura gigantesca diante de meus
olhos, pelo que pressinto toda a escuridão que se forma ao derredor. Memórias
dos primeiros tempos, quando tínhamos visões de terror, e víamos fantasmas, e
nossos mortos perambulavam pelas ruas, mortos vivos caindo aos pedaços. Tudo,
tudo voltou a minha mente. Meus ossos tremem e o suor desliza frio sob minha
face. Númis, a grande e poderosa sacerdotisa de pedra, está parada. E seus
dedos me apontam. O espectro do mundo permanece em movimento, mas, para mim, é
como se o tempo tivesse parado por ora. Pois é certo que ela me jogará nas
cadeias da mente, nas quais serei por algum tempo atormentado. Há aqueles que
lá foram postos sem que jamais pudessem restabelecer a sanidade. Há aqueles que
se foram. Ela não tem piedade dos corruptores, e os entrega a sua serva, a
loucura.
Estranhei o fato de o estrangeiro, aparentemente,
zombar de minha triste condição. Pois ele estava ao meu lado e, aparentemente,
sem qualquer reverência ante a grande sacerdotisa. Isso só aumentava a
atipicidade da ocasião. Que terror, eu senti, ser punido nas cadeias da mente ao
lado de um estrangeiro que não se compadece. Em verdade, ele mesmo me entregou,
ao sair de minha frente e me pôr diante dela. Agora, convencido estou de que
esse poder de fato se estende por toda a Terra, pois foi para ela que veio o
estrangeiro, não por outra razão senão a de lhe entregar meu espírito.
Mas, eis que algo surpreendente ocorre.
Lentamente, como que em obediência a uma força maior e desconhecida, a
sacerdotisa se volta em outra direção. Volta, pouco a pouco, a sua rotina de
movimentos bruscos, por meio dos quais observa, verifica, investiga, vasculha
as almas de todos os seus servos, remetendo alguns, os que não se dedicaram à
servidão profunda e absoluta ao poder estabelecido, às prisões da mente.
E eu mesmo sou um daqueles corruptores. Mas estou
livre. E esse é agora também um grande mistério. Como eu, livre como estou,
vivo dentro dos muros dessa cidade e posso generosamente contemplar sua
grandeza, e seu poder, e a magnanimidade do grande Zardok? Pois Númis não
adentrou em meu coração, nem em minha mente, e, aparentemente, sequer ouviu
minhas palavras. Mesmo assim, senti-me como alguém que é tranquilizado pelo
dono de um cachorro feroz, que garante que ele não morde.
O estrangeiro tocou mais uma vez em meus ombros e
me conduziu ao interior da taberna.
Era um lugar escuro, cujo teto ficava bem no
alto. As paredes estavam empilhadas de garrafas de vinho. Algumas garrafas
estavam velhas e cobertas de teias. O interior da instalação estava quase vazio,
o que fazia dali um bom lugar para se esconder. Em verdade, não havia muros que
impedissem a sacerdotisa de ver e conhecer os homens sob seu julgo, mas agora
era dos olhos dos demais servos que nos escondíamos. O dono da taberna é uma
figura que sempre me causou curiosidade. Não tinha filhos, não era servo do
poder, nem guerreiro. Eu intuí que tal homem também experimentasse tal
circunstância à qual, aos poucos, me acomodava. Sim, o dono da taberna era um
como o estrangeiro, haja vista que ambos se olhavam nos olhos. Ele se aproximou
da mesa escolhida pelo estrangeiro para que nos sentássemos.
- ‘O que vão querer?’
- ‘Nos traga um pouco daquele vinho’ -
Respondeu o estrangeiro, como se fossem velhos conhecidos. O dono da taberna
acenou com um sorriso. Dirigiu-se até o outro lado do balcão e retirou dali uma
garrafa muito distinta, limpa, na qual se podia ler a palavra ‘Sangue’.
Trouxe-a de volta e, sem que fosse convidado, sentou-se à mesa, passando a
participar da conversa. O estrangeiro se voltou para mim e começou a contemplar
minha expressão de perplexidade. Como que adivinhasse meus pensamentos,
disparou:
- ‘Você não mais lha pertence’.- ‘A quem?’ - Perguntei eu, como se já não soubesse a resposta.
Ele respondeu com um sorriso, no que foi acompanhado
pelo dono da taberna. E o sorriso se estendeu por mais um pouco, enquanto o
estrangeiro levantou a caneca e deslizou todo o líquido garganta abaixo, para
depois batê-la sobre a mesa. O dono da taberna se apressou em enchê-la mais uma
vez.
- Quem é você? - Perguntei.
- Eu sou o nômade. E você é um homem livre agora.
- Como assim? Livre?
- Você não pertence mais a esse lugar.
- Como ele? - Apontei para o dono da taberna.
- Ele é diferente. Mas, de certa forma, parecido.
As respostas são curtas e enigmáticas, lacônicas
até. Experimento um aperto na altura de meu abdômen. Há muito trabalho por
fazer, já que estou dentro de meu turno. Ainda me esforço para assimilar o
evento do qual acabei de participar, quando o estrangeiro me deixa ainda mais
confuso:
- Você precisa partir.
- Partir? Como assim, partir? Partir para onde?
- Você precisa sair da cidade. Precisa
atravessar os portões. A sacerdotisa não tem mais poder algum sobre você, mas é
próximo o momento em que Zardok estará. Seus olhos brevemente voltarão, e,
quando isso acontecer, você não poderá estar aqui.
- Por que não?
- Porque Númis não será mais o problema, ela
já terá concluído sua obra, e passará então a controlar outros povos. O poder
de Zardok presente tomará os homens, tanto guerreiros quanto servos. E eles se
encarregarão de dar cabo à tua vida. Não tenha dúvida. Porque, a partir do
momento em que você ousou olhar para as estradas dos céus, você passou a
incomodar o sono de todos esses escravos.
Isso me pôs a pensar, e me deixou perplexo. Tive
vontade de perguntar ao estrangeiro então por que motivo todos os homens não
são livres. Olhei para o dono da taberna e tive a vontade de perguntar a seu
respeito, quando ele mesmo, como que lesse meus pensamentos, como a sacerdotisa
o faria, deu-me a resposta:
- Não olhe para mim, rapaz, não é o meu tempo
de ser perseguido. Não mais. Pertenço a outra raça, e a outra ordem. E isso é
tudo o que você deve saber.
Deu-me vontade de conversar por horas sobre isso.
- Agora beba.
Aceitei beber um gole daquele vinho. Não tinha o
hábito de beber, no que sou acompanhado pela maioria dos habitantes da cidade.
A taberna teve seus bons tempos, nos quais vivia cheia. Mas depois que o poder
se estabeleceu, gradativamente o desejo dos homens por bebida foi, aos poucos,
substituído pelas palavras que o poder lhes dirigia, fosse pelo trono de
Zardok, fosse pelas ordens diretas da sacerdotisa, ao avaliar nossas almas.
Isso preenchia nossos espíritos de tal modo que, tal qual escravos, perdíamos o
desejo próprio e fazíamos apenas o que expressasse o desejo do poder
estabelecido em nós.
Agora, bebia para assimilar as palavras do
estrangeiro e do dono da taberna e as circunstâncias nas quais me foram
proferidas. Sair da cidade. O que seria de minha vida fora daqui, onde está
tudo o que me pertence? O que me espera lá fora? O estrangeiro agora se põe de
pé. Ele e o dono da taberna dão um longo aperto de mão e um abraço. Seria o
dono da taberna também um nômade? Teriam a mesma origem? O estrangeiro se
voltou para mim e reforçou suas palavras.
- ‘Esteja nos portões da cidade à meia noite de amanhã. Eu te aguardarei.’
Abriu a porta da taberna e saiu. Corri atrás
dele, no intuito de argumentar ainda mais e dissipar de algum modo minha
incerteza, porém o estrangeiro já não estava. Tive medo de voltar para dentro
da taberna. Notei que algumas pessoas passavam pela rua e olhavam na direção do
meu espectro. Atônito, com o coração na garganta, trêmulo, e com os músculos
totalmente contraídos, segui em direção à obra, com o trabalho a terminar.
Temeroso de uma aproximação maior com a sacerdotisa, ingenuamente, contornei a
cidade. E trabalhei para não pensar mais naquele dia.
A noite chega e é hora de todos os servos
caminharem para suas respectivas habitações. Os servos vivemos em torres de
pedra, construções de cerca de quarenta côvados de altura. Subir os degraus até
o ponto mais elevado é uma tarefa que cabe a mim, jovem dentre os servos.
Então, subo os degraus até o ponto mais elevado e chego, assim, a minha
habitação.
Jalaana, mulher à minha disposição, me aguarda.
Em verdade, não com muita expectativa. Ela estava com aquele mesmo ar exausto e
relaxado que costumeiramente sentem as mulheres que voltam do harém de Zardok.
Ela tinha longos cabelos negros, negros como a asa da graúna talvez, e que
desciam quase até a cintura. Vestia um longo vestido branco transparente,
típico das mulheres dos servos. Por ordem de Númis, as mulheres do reino deviam
sempre excitar aos homens do reino, para que se mantenha constante a produção
de filhos, e que a Terra seja povoada com os servos da Eficácia.
Depois de todas as coisas que aconteceram neste
dia memorável, senti o desejo de lhe partilhar o que preenchia meu coração, e,
para começar com uma surpresa, olhei-a nos olhos, esperando que experimentasse
a sensação que me tomou. Detive-me à sua frente e levantei-os em sua direção. A
expressão assustada de Jalaana, ao ser encarada tão intimamente, realçou sua
beleza. Eu já sabia que era bela, mas olhar em seus olhos assim me causou um
frenesi intenso.
- Podemos ser livres. Ouviu-me? Podemos ser livres.
Agora Jalaana me observa com uma nítida
interrogação em sua face, ela que jamais experimentou a sensação de olhar nos
olhos de outro que não fosse a sacerdotisa.
- Muitas coisas ocorreram neste dia.- Que coisas? - Perguntou.
- Um estrangeiro, um nômade, esteve aqui dentro dos muros de nossa cidade, hoje. E conversou comigo.
- Um estrangeiro? Um nômade? Sabe o que Númis
fará a respeito? Sabe que neste exato instante ela poderia vir até aqui e nos
aprisionar nas prisões da mente? Enlouquecestes tu ao trazer tal maldição para
casa?
- Eu olhei para os céus.
Jalaana, nesse momento, tirou minhas mãos de seus
braços e se afastou, virou de costas para mim e se escondeu por trás daqueles
longos cabelos. As velas criavam uma penumbra e o vento forte balançava as
cortinas e os véus do quarto. Ela se voltou para mim novamente e, agora, olhou
em meus olhos. Havia, entretanto, uma luz no fundo de seus olhos, e era uma luz
intensa. Percebi que guardava, em seu ventre, um futuro guerreiro de elite.
Isso muito me entristeceu, a despeito de ser essa a sina de todos os servos, o
que, agora sabia, eu não era. Não mais.
A luz presente em seus olhos se torna mais
intensa, como que se o ser dentro dela desde já se manifestasse e se rebelasse
contra a liberdade em mim sentida. Jalaana se afasta de mim e eu me apresso a
lhe explicar o que se passa. Ela se mantém em silêncio, ainda assustada com a
ousadia minha de lhe encarar. Pode-se perceber que lhe faltam as palavras tanto
quanto o fôlego. Seu olhar me faz sentir como se fosse o próprio estrangeiro,
que de peito estufado passeava entre os guerreiros sem ser importunado.
Insisti, segurando seus braços, mas agora mais delicadamente, já que percebi
que, na minha ânsia, a apertava.
Jalaana se voltou para mim experimentando um ar
mais calmo e segurou minhas mãos. Puxou-me para a mesa e iniciamos o ritual.
Comemos, bebemos e depois fomos para a cama cumprir nossas obrigações perante
Númis. Um casal eficiente produziria um filho a cada ano, e todos seriam
dedicados à Eficácia. Alguns nasceriam com a força de guerreiros, outros
nasceriam mulheres, e estes seriam os mais desejados. Os que nascessem meninos
e sem força suficiente para guerreiros seriam desprezados, e viveriam como
servos. O próprio que vos fala é de uma família de guerreiros. Mas cresci
cuidando de ovelhas e meu próprio pai me condenou à condição de servo.
Por muito tempo tentei convencê-lo de que podia
ser um guerreiro, mas ele desdenhava. Sonhava com o cumprimento de grandes
façanhas, as quais ele parecia aguardar de um modo aparentemente zombeteiro que
eu lhas contasse. Certa vez, sonhara ter matado um urso, e ele dizia ‘mataste
um urso’, e ria. Matei um leão com minhas próprias mãos, em outra
oportunidade, mas meu pai zombava dessas histórias. Até um gigante atirei ao
chão, e ele não se continha. Um a um, vi todos os meus irmãos serem preparados
por meu pai para servirem ao reino de Zardok como grandes e poderosos homens,
enquanto reservava a mim seu olhar de desprezo e seus escárnios. E assim, no
momento propício, segui minha sina e aceitei resignadamente minha condição.
As mulheres do reino de Zardok são, em verdade,
muito belas. O reino de Zardok é exigente. Aqui tudo é belo, brilhante,
colorido, majestoso. Tudo isso à custa do serviço dos servos e dos escravos,
vindo de outras regiões dominadas pelo reino. Um reino de beleza e terror, um
reino de ordem à última instância. As mulheres aqui são também escravas.
Escravas da beleza. Escravas do sexo. Escravas da submissão.
Ouvi histórias de mulheres que foram punidas por
Númis por conta de sua insubmissão à própria sacerdotisa, a Zardok, ao reino.
Porque não há, de acordo com a lei, insubmissão aos homens, guerreiros e
servos, mas apenas ao reino. A mulher que nega o ritual a um servo ou a um
guerreiro sofre a pena de ter seu clitóris arrancado pela espada. Aquela que o
faz em relação a Númis tem a prisão perpétua nas cadeias do pensamento. Por
fim, aquela que cometer o sacrilégio de negar o ritual ao próprio Zardok...
bem, esta é melhor eu não dizer. É tão terrível que eu mesmo não consigo
descrever. Talvez se pudesse experimentar um pouco daquele vinho que provei
hoje na taberna...
Assim, realizamos, eu e Jalaana, o ritual por
toda a noite. Agora, pela primeira vez, com o contato visual. A paixão me tomou
por completo. Sempre pude sentir seu cheiro, o gosto de sua pele, ouvir sua voz
macia. Mas olhar em seus olhos era totalmente diferente, ainda mais com sua
expressão assustada. Ela temia, mas ao mesmo tempo se entregava. Creio que
estabelecemos uma conexão de cumplicidade. Compreendi que era hora de lhe
mostrar as estradas dos céus.
Ela olhou para as estradas e demonstrou surpresa.
Por um momento confidenciou-me não ter mais medo. Éramos, nós dois, livres do
poder estabelecido. Estávamos prontos para deixar a cidade.
Extasiado, acordei. Definitivamente não era mais
um servo, mas um homem livre. Não temia mais a sacerdotisa Númis, e Zardok,
definitivamente, era aquele que é, mas não está. Em meu delírio de prazer e
alegria, tornei-me, de certa forma, imprudente. Apesar de tudo, havia os
guerreiros do reino, e cruzar os portões era um desafio. E ainda teria de levar
Jalaana. Conseguiremos dar cabo ao plano de fuga?
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